A minha homenagem a Mário Barradas
Há três ou quatro anos vim fazer um espetáculo aqui ao Garcia de
Resende e numa pausa da montagem, por um momento fiquei sozinho no
palco.
Foi um momento privilegiado de recolhimento, de introspecção que
desencadeou em mim a memória do tempo que eu aqui passei jovem actor,
cheio de vontade de fazer coisas e com a convicção que o teatro era o
melhor, o mais sábio, o mais eficaz e gratificante contributo para mudar o
mundo.
No silêncio do espaço vazio a minha memória ou a minha
imaginação, ou as duas juntas, começaram a materializar ecos e vozes que
se tornavam seres vivos e reais, como se eu tivesse feito uma viagem no
tempo, voltado a um dia já vivido, a um tempo em que fazer teatro era
mister sagrado, em que todos nós éramos oficiantes de um ritual que nos
exigia saber, mestria, dignidade, desprendimento dos interesses materiais e
me trazia a sensação de tranquilidade, por fazer aquilo que devia ser feito.
Não havia desânimo, mas sim alegria de viver, não havia cansaço, mas sim
confiança no futuro.
Confesso que foi um momento perturbador.
Como se eu tivesse saído da realidade do meu dia a dia, e tivesse vivido por um instante um mundo paralelo ou o mundo que nessa altura a equipa do Centro Cultural de Évora queria construir.
Falar do Mário hoje aqui é algo semelhante, igualmente emocionante
e perturbador, porque de facto ele era a energia, a força da convicção, que
alimentava aquela realidade.
Sei que quando falo do Mário quase sempre falo da influência que
ele teve em mim ou de como ele abriu caminhos ou perspectivas que me
levaram ao que hoje sou e faço.
Talvez não tenha crescido o suficiente para me tornar adulto e
independente. Autônomo.
Talvez não tenha feito ainda o meu luto. Talvez não aceite a morte como uma realidade universal e inevitável.
Talvez não seja fácil ultrapassar a ausência de um Amigo e de um Mestre, mas quando me surge uma dúvida ou uma dificuldade ou julgo que preciso de uma opinião elaborada ainda penso ” Vou telefonar ao Mário”.
E deve ter sido muita vez assim durante os longos anos da nossa
amizade ou da nossa regular colaboração profissional.
E também representei a figura do filho pródigo que partia para fazer
o seu próprio teatro e que voltava a casa depois das desilusões.
E para mim no regresso havia sempre festa e braços abertos e o
recomeçar da colaboração porque efetivamente estávamos do mesmo lado
do teatro e como um pai ensinava-me muita coisa.
Ensinou-me por exemplo que fazer Teatro era uma profissão muito
digna e não uma alegre fantochada, meio caminho entre o comércio da
figura ao serviço dos bens de consumo e o ridículo dos que têm da ser
sempre belos e engraçados para sobreviverem no teatro e na vida.
Ensinou-me que assumir uma atitude ou um discurso diante de um
público nos acarreta uma grande responsabilidade social e que só podemos
oferecer aos outros aquilo em que nós próprios acreditamos convictamente.
E que não podemos ter um discurso para os outros e uma
prática privada negando o que afirmamos na cena.
E falava-me de Dullin e de Jouvet e de Vilar e como Gérard Philipe
esperou que Vilar acabasse o ensaio para se oferecer para actor da sua
companhia.
E lia-me os clássicos e demonstrava-me como eles eram ainda
actuais e serviam o nosso tempo, como se aprendia com eles tanta coisa
sobre a condição humana, sobre o presente e o futuro da nossa sociedade.
E foi o primeiro que me disse claramente para que servia o Teatro que não servia para nada se não servisse para mudar o mundo e não nos tornasse pessoas mais lúcidas, mais responsáveis, mais dignas e mais nobres nos comportamentos, nos sentimentos e nas opções dos caminhos a
percorrer na vida.
E olhava a realidade nos olhos, sem ilusões e sem fantasias e sabia
as dificuldades que tinha que enfrentar.
Conheci-o quando me levaram para Moçambique, para uma guerra que não era a minha e encontrei-o a fazer Brecht, esse autor maldito, proibido na metrópole e que ele conseguia fazer na colônia, convencendo a
censura que o que diz que sim e o que diz que não era uma peça
didática ou seja uma peça para crianças. e a censura acreditou.
Ainda me lembro da impressão que o espectáculo em mim produziu.
Aquele teatro e aquela estética eram para mim uma novidade surpreendente que me marcavam fortemente e à qual aderia sem hesitação.
Era um teatro diferente do da Lisboa que acabara de deixar. Era um
teatro da calma reflexão, da depuração da cena e que produzia em nós o
prazer de pensar.
E vejo aqui mais uma lição ou ensinamento que me passou quando
eu estudava engenharia e nem imaginava que alguma vez pudesse ser actor
O prazer de pensar durante um espetáculo. E levar para casa um pouco
mais para pensar depois.
E ainda ter daí a seis meses a memória de uma
inquietação que o espetáculo produziu.
E a descoberta de que os problemas das sociedades ou os nossos privados não se resolvem dentro das salas dos teatros e que os teatros que os resolvem na cena prestam um mau serviço à sociedade, pois deixam o espectador ir para casa dormir tranquilamente e deixam a sociedade da injustiça, da desigualdade e da corrupção seguir tranquila sem oposição a sua marcha de desumanidade.
Mesmo antes de Strasbourg o Mário era já um criador autônomo e
original apesar da influência da cultura francesa.
Lia-me os clássicos em francês e com paixão mostrava-me a beleza
da escrita e alertava-me para a leitura de Marivaux que não era só feito de
palavras. E Musset não era um romântico idiota.
Descobri com ele Goldoni e passei a desvendar os segredos de
Shakespeare e de Molière.
E discutíamos os textos que havíamos de fazer oportunamente e que
alguns nunca chegamos a fazer como Fuenteovejuna ou o Alcaide de
Zalamea.
E o Mário que amava os clássicos, fazia frequentemente os
modernos, e não era só uma questão de orçamento, era saber que o teatro é
sempre aqui e agora e que não se pode fazer os textos do passado sem
olhar para o que agora se escreve.
Um dia o Mário partiu abandonando uma carreira de advogado
distinto e a caminho de poder enriquecer.
Recebi outra lição. Para ele o dinheiro não contava. E o teatro do
Mário tinha também uma dimensão de luta e a luta dele não era pelo
dinheiro. O teatro dele tinha uma dimensão política e ele não tinha dois
discursos.
Fiquei como fiel depositário da sua biblioteca e comecei a olhar o
teatro de outra maneira ou com outra responsabilidade.
Quando voltou o Mário era outro criador. A sua ousadia perante o
risco era muito maior, a sua convicção era a mesma, mas a coragem de
afirmar o que havia para dizer era mais robusta.
Posso dizer que cento e cinquenta anos depois Mário Barradas encarna Garrett como a figura impulsionadora da transformação do teatro
em Portugal.
Reforma o ensino do teatro.
Traz novos textos e novas estéticas para a cena.
Funda o primeiro Centro Dramático.
Dinamiza a Descentralização.
Forma quadros para esse Movimento.
Difunde e aprofunda o conceito de Teatro Serviço Público
Paga o tributo ao Ministério da Cultura suspendendo a sua actividade
de criador e mete mãos na complicada tarefa de legislar e organizar o
teatro
Traduz. Divulga. Cria associações. Partilha projectos.
E sofre as ofensas dos que preferem a desordem e a confusão onde se
safam melhor.
Só não o vi meter-se com com a sua habitual energia no domínio da
escrita, creio eu por pudor, porque considerava o autor, o grande , o maior
ou talvez o único criador teatral.
E também por isso abominava e combatia os que faziam espectáculos
a partir de …um autor qualquer ou os que faziam adaptações para tornar os
textos compatíveis com os seus elencos ou os seus orçamentos.
Convictamente afirmo que Mário Barradas foi a figura mais
dinâmica e empenhada na transformação do panorama teatral português e
por isso aqui lhe deixo todo o meu reconhecimento.
Por vezes ouço na televisão ou leio nos jornais uns eruditos que
dizem que quem pensa como o Mário pensava perdeu a noção do mundo onde vive e falam de utopias falhadas e estabelecem as normas da
competitividade e do que eles entendem por sucesso num mundo em que
se pensa sempre em ultrapassar alguém.
Por isso a homenagem que hoje posso prestar a Mário Barradas é
continuar a lutar por um mundo de justiça social, de fraternidade, de
tolerância e partilha, um mundo onde valha a pena viver.
E ” Somos tão poucos e há tanto, tanto para fazer” como ainda ontem
ouvia um actor dizer na personagem de Ivanov.
E ainda em privado lhe agradeço ter-me indicado caminhos, porque
podia ter sido engenheiro ou professor mas certamente não teria sido tão
feliz como sou no exercício desta minha profissão.
Obrigado Mário