Nuno Gomes Garcia
Nuno Gomes Garcia é historiador, arqueólogo e nos últimos anos tem-se dedicado em exclusivo à escrita escritor.
Vive em Paris, tem tanta paixão pelo que faz, que se sente a empolgação em cada palavra que diz.
acaba de lançar mais um livro “Zalatune”, motivo mais que suficiente para uma bela conversa
Como começou a escrever?
Mal comecei a ler, fiquei logo com vontade de escrever. Comecei a ler muito cedo graças à pequena biblioteca do meu tio. A minha mãe não tinha meios para comprar livros e, na minha infância, as bibliotecas eram escassas, por isso aquela estante de livros que o meu tio, que era sapateiro e reparava as botas dos pescadores de Matosinhos, comprava com grande sacrifício foram um bálsamo. Esse meu tio nunca casou. Ele disse-me um dia que para ter filhos e não os conseguir sustentar mais valia não os ter. E ele lá ia gastando o pouco que tinha em livros. Ele ainda é um grande leitor. Quando ele viu que eu, que fui uma espécie de filho substituto, passava a vida em redor daqueles livros, passou a comprar ainda mais, embora não levasse em consideração a minha idade. Então eu lia o que ele comprava, quase sempre livros pouco adaptados à minha idade. O que é capaz de ter sido positivo. Hoje vemos livros juvenis que infantilizam as crianças, e isso é péssimo. Bem, a minha vontade de escrever foi-se então alicerçando naturalmente em todas aquelas leituras e fui colecionando sebentas com histórias e simples impressões. Claro que por causa das tempestades familiares que de vez em quando iam atingindo a minha infância acabei por perder tudo isso. Só muito mais tarde, depois dos trinta, quando me achei com maturidade suficiente, pensei em publicar.
Agora tem um novo livro, “Zalatune”, que livro é este?
Eu nunca me vi como um autor de distopias, embora as tenha lido todas. Não apenas os clássicos do género como Orwell, Zamyatin, Huxley, mas também outros mais ligados à ficção científica como o K. Dick. Eu sempre me vi como um autor de romances históricos, se bem que bastante efabulados, como “O dia em que o Sol se apagou” ou “O soldado Sabino”. A verdade é que depois de “O Homem Domesticado” lá apanhei o gosto à escrita de distopias, e assim nasceu esse “Zalatune”. O nosso tempo é dado a distopias. Tal como nos anos 20 e 30 do século XX, nós conseguimos hoje cheirar a chegada de mudanças radicais que poderão por em causa o nosso modo de vida, as nossas Democracias que, mal ou bem, fomentam a tolerância, a liberdade, o multiculturalismo, o respeito por quem é diferente. E esses perigos que andam pelo ar assustam-me imenso, não tanto por mim, mas mais pelos nossos filhos. A história, ou histórias, que conto em “Zalatune”,
a criação daquele mundo que às vezes nem parece tão ficcionado assim, é o fruto de todas essas minhas inquietações.
Quais são as suas inquietações na gênese deste livro?
São tantas que nem sei por onde começar. A mais séria de todas talvez seja a dinâmica causada pelas alterações climáticas, tema tratado em “Zalatune”. Existem zonas em África, o Sahel, por exemplo, que, além de possuírem os países com a população mais jovem do mundo, estão a entrar num processo inexorável de desertificação. Todas essas populações vão ser obrigadas a encontrar alternativas para sobreviver. É normal que uma parte delas venha para norte. Ora, nós, europeus, habitantes do continente mais rico e com a população mais envelhecida do mundo, precisamos desse sangue novo para redinamizarmos as nossas sociedades, mas temo que as principais reações a essa chegada maciça de refugiados climáticos sejam o ódio, o racismo e a xenofobia. Isso já está a acontecer com a ascensão dos populismos de extrema-direita. Esse novo tipo de populismo potenciado pelas redes sociais que vivem da indignação irracional, que funcionam como fábricas de raiva. O que eu faço em “Zalatune” é apenas antecipar o que julgo ser uma quase inevitabilidade. A escrita deste livro foi para mim uma catarse e ao mesmo tempo uma espécie de preparação intelectual para a resistência contra o regresso dos fascismos e de outras componentes liberticidas ao nosso continente e ao nosso país.
Até que ponto a realidade do livro é comparável com a realidade Portuguesa?
Portugal entrou com algum atraso na era dos populismos da extrema-direita racista. Pelos vistos, os 48 anos que vivemos amordaçados pelo fascismo não foram uma vacina suficientemente forte para nos imunizar. Já aqui em França, esse é o pão nosso de cada dia há anos devido à existência do partido do clã Le Pen e todos os grupúsculos identitários e xenófobos que gravitam em seu redor. Apesar daquela conversa bacoca contra a corrupção, como se existissem partidos a favor da corrupção, atrair muitos incautos indignados que confundem a árvore com a floresta, Portugal está ainda numa fase embrionária desse processo, o que significa que ainda nos podemos salvar; resgatar a nossa Democracia, a nossa natural aptidão
para respeitar os direitos humanos, sejam os direitos das mulheres ou dos homossexuais, o direito de liberdade religiosa e ideológica, o direito a conceber asilo a quem foge da guerra, da fome… A extrema-direita portuguesa, embora se disfarce de cristã, com toda aquela beatice serôdia, é contra tudo isso. A extrema-direita é pela desumanização da sociedade. E, a meu ver, Portugal, ou qualquer outro país do mundo, não tem futuro sem humanismo. Sem humanismo a humanidade está condenada ao fracasso, ao desaparecimento. É essa a principal mensagem de “Zalatune”.
Existe mesmo esta ilha?
Ínsula é um país totalmente ficcionado. Inspirei-me, claro, ali e acolá, em realidades que já existem, mas é tudo essencialmente inventado.
Como funciona a internet insular!?
A intranet insular. Um dos referendos mensais propostos pelo Governo de Ínsula conduziu ao fim da internet e à instauração de uma intranet insular, em ciclo fechado, de maneira a proteger a população da ilha de qualquer influência exógena de modo a fomentar a autarcia que os insulares anseiam.
Como se define como escritor?
Essa pergunta é muito difícil de responder porque quem deve definir um escritor é o leitor. Eu sinto-me acima de tudo um homem do meu tempo que se questiona, que se questiona muito. Às vezes, sinto-me esmagado por uma série de inquietações e uso a literatura, os livros que escrevo, como um meio para me organizar mentalmente perante essas mesmas inquietações e questões. Tenho também o objetivo, se possível, de levar o leitor a questionar-se, pois, a meu ver, sem um questionamento preliminar jamais se encontrarão soluções para os problemas que atingem as nossas sociedades.
A quem se destina este livro?
Este romance destina-se a todos os leitores. “Zalatune” é uma distopia que tenta fugir ao convencional do género e que tem no seu interior muitas histórias diferentes que, creio, será do agrado de todos.